terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dilma, o governo Lula e a luta da população negra: entre o gabinete e a rua, o que fazer?

Por Rosenverck E. Santos*



No dia que entrou em vigência o Estatuto da Igualdade Racial a presidenciável do PT, Dilma Rousseff, dedicou o seu programa eleitoral ao que ela chamou de grande avanço da democracia brasileira. Não parou por aí. Trouxe, em seu discurso pérolas há muito desmistificadas pelo movimento negro como a do Brasil mestiço, onde não ocorre ódio racial e todas as raças se respeitam mutuamente formando uma nação harmônica e democrática, precisando apenas alguns ajustes. Não fosse trágico poderíamos pensar ser uma piada. Mas não era!

Tal afirmação não era apenas um jogo retórico de uma presidenciável. Pelo contrário, demonstra um projeto de país que acredita e difunde a Democracia Racial como pressuposto de legitimação do poder existente e da ordem necessária para se atingir o progresso. Qualquer semelhança com o ideário racista e positivista do inicio da República que empurrou a população negra para a marginalidade associando democracia e coesão racial, não é mera coincidência!

Este projeto consubstanciado no discurso eleitoral avança para além da verborragia descontextualizada para se materializar, enquanto projeto de país, na destruição das reivindicações históricas do movimento negro emblematizado na farsa do Estatuto da Igualdade Racial, na invasão do Haiti e no assassinato de milhares de crianças, homens e mulheres negras pelo exército de Lula e pelo veto dos artigos que tratam de financiamento da Lei 10.639/03. Ou seja, enquanto projeto de nação, você reconhece a diversidade etnicorracial do povo brasileiro e a mantém no plano ético, moral e intelectual, isto é, afirma a necessidade de se respeitar a diversidade como atitude intelectual e cultural, mas no plano concreto da materialidade não oferece nenhuma condição de implementação e implantação. Resultado esperado: a população negra mais uma vez será responsabilizada pelo seu lócus social na sociedade de classes. A lógica é simples: - se foi garantida as oportunidades, qual será a razão da pobreza social dos negros e negras. A resposta é velha: a incapacidade intelectual e moral dos negros e negras. Mais uma vez, qualquer semelhança com o ideário racista do inicio da República que empurrou a população negra para a marginalidade associando democracia e coesão racial, não é mera coincidência!

É por isso que as ações do governo do PT, muito habilmente, absorvem as demandas do movimento negro e as adequam ao estatuto puramente jurídico abstrato formal sem nenhuma ação real e concreta para torná-las implementadas e implantadas. É dessa forma que se garante a introdução da lei 10.639, no plano jurídico, mas não se garante o financiamento, nem a estrutura suficiente para a formação e viabilização da lei. Qualquer militante honesto do movimento negro sabe disso! É por isso que o governo e Dilma se vangloriam do Estatuto da Igualdade Racial retirando todos os parágrafos e ações que realmente mudavam alguma coisa na estrutura desigual desse país, mantendo inclusive a famigerada ideia de Democracia Racial. É um verdadeiro presente de grego – um presente ao estilo europeu fornecido pelos democratas do DEM e da bancada rural com o conchavo petista – para os pretos e pretas do Brasil. Levante o braço a entidade do movimento negro que também está nesse conchavo!

A direita liberal e/ou neoliberal tem bem claro seus aliados e/ou seus inimigos. A Frente Popular liderada por Lula e agora por Dilma também tem! Com uma diferença. Enquanto a direita neoliberal tem os movimentos sociais como inimigos, a direita travestida de esquerda conhece a força dos movimentos sociais e sabe (infelizmente) como cooptá-los. Sabendo que precisa de base de apoio que vá para além das oligarquias e da burguesia, a Frente Popular manipula e utiliza as lideranças como forma de anestesiar as reivindicações numa espécie de contrato social – outro presente à moda européia (?) - entre a elite e os movimentos sociais. Os movimentos sociais adestrados tergiversam e criam manobras linguísticas utilizando todo arsenal do português para afirmarem que “poderíamos ter mais, porém já avançamos muito”.

A questão, no entanto, não é se poderíamos ter conquistado mais, e sim, o que realmente poderíamos ter conquistado e o que realmente conquistamos e perdemos. Todo governo de Frente Popular, em sua função mediadora entre os exploradores e opressores e os movimentos sociais sabe magistralmente conceder com uma mão e retirar com a outra. O que se concede é maior e mais qualitativo do que o que se retira? Os artigos retirados da lei 10.639/03 valem menos que os outros? Vejam o Estatuto da Igualdade Racial, a invasão do Haiti, as secretarias sem orçamento e tantas outras medidas que estão na base e sustentam qualquer política pública que realmente se pense em fazer funcionar. Mas o pior não é isso!

O pior está no silêncio (dos vencidos?) de alguns movimentos sociais que ao se adaptarem à função mediadora do governo Lula e da proposta de governo de Dilma não apenas abandonam a rua para se tranca(fia)rem em escritórios com ar condicionados – à moda europeia ?– mas constroem um arsenal discursivo que joga na lata do lixo qualquer história militante e qualquer desconstrução simbólica que décadas e décadas foram necessárias para se fazer ouvir e sentir.

É por essa razão que ouvimos essencialismos conservadores como apoiar Dilma apenas por ser mulher. O essencialismo é uma marca da direita racista, é sua cria pseudocientífica. Atrelar a capacidade intelectual e moral à condição de sexo ou etnicorracial é criação racista da direita. Entrar nesse campo é jogar o jogo da elite que não faz parte de nossa história, de nossa memória e de nossa resistência. Apoiar Dilma por ser a primeira mulher presidente é reproduzir o discurso marginalizador da burguesia e reafirmar o essencialismo hierarquizado do ser humano. Se fosse um jogo de xadrez: - Xeque da direita!

Sabemos que o Estado apesar de ser um instrumento da burguesia para dominar é composto por contradições e que devemos atuar nessas contradições para atingir conquistas democráticas. Saber disso, no entanto, não nos autoriza a compactuar com um governo que mente, abusa da corrupção e empreende ou apoia o extermínio da juventude negra, da venda do pais, do desmonte da Universidade e do funcionalismo público que afeta indiscutivelmente a grande maioria da população negra do Brasil. Para atuar nas contradições do Estado, este Estado tem que estar sob o nosso controle, caso contrário, somos nós que estamos sob o controle dele.

Aos movimentos que chamaram voto a Dilma e a apóiam sintam-se a vontade para assumir esse governo como seus, afinal, as ruas, as greves, as passeatas, as barricadas estão pouco a pouco (ou muito em muito ?) deixando de lhes pertencer. Nessa relação entre Estado e movimentos sociais, vocês já são Estado e muito pouco movimento. Por isso a retórica de que podemos ainda conquistar mais... é retórica governista. É retórica lulista, sarneysta, collorista e de tantos outros oligarcas por esse país a fora!

Conquistar ou reconquistar a nossa história de resistência... isso sim, seria uma conquista que orgulharia Zumbi dos Palmares que não aceitou ser Estado opressor e se manteve no fronte de batalha!!

- Aos vencedores (ou vencidos?) reafirmamos: estaremos presente nas ruas, nas passeatas e nas greves entoando as lições de Solano Trintade que nos ensinou por meio de suas poesias – poesias que devemos revisitá-las – que não são irmãos aqueles negros que estão ao lado dos exploradores e opressores, não são irmãos aqueles negros que estão com as multinacionais, são nossos irmãos apenas aqueles negros que continuam lutando pela liberdade e resistência da população negra...

Xeque-Mate da população negra trabalhadora!!!

* Professor da UFMA, militante da CSP - CONLUTAS e do Movimento Quilombo Raça e Classe

Nenhum comentário:

Postar um comentário